sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Poemas de ano-novo

Caros amigos,

A mudança de ano, sabemos, não é mais que um rito de passagem. Materialmente, nada muda, de verdade. Mas como acontece com todo e qualquer rito, esse é prenhe de forte significado simbólico. E para comemorar o rito, três poemas de ano-novo: Ano-novo, de Gullar, Receita de ano-novo, de Drummond, e Esperança, de Quintana. Para todos, um ano-novo!





ANO NOVO

Meia-noite. Fim

de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.

Olho o céu:

o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça:
nada ali indica
que um ano novo começa.

E não começa

nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.

Começa como a esperança

de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
                   estelar
                   que sonha
                   (e luta).
 

GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1997.




RECEITA DE ANO-NOVO
 

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Poesia completa. Nova Aguilar: Rio de Janeiro, 2003.



ESPERANÇA

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso vôo!
 será encontrada miraculosamente incólume na
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...

QUINTANA, Mário. Nova Antologia Poética. Editora Globo: São Paulo, 1998, pág. 118.





segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A "flauta onírica" de Carlos Cunha

"Antes de tudo, um poeta lírico". Assim Rui Espinheira Filho define o poeta baiano Carlos Cunha.Grande agitador cultural nos anos 1960, o poeta vive hoje recluso; longe dos holofotes, porém, sua poesia se mantém luminosa, coisa de que só a grande poesia é capaz. Do livro A flauta onírica e novos poemas, escolhi quatro,o último deles natalino.




RETRATO/VISITAÇÃO


Vou reflorir o teu ventre
de camafeus e camélias
de batuques e anêmonas,
com os teus barões perecidos.

Vou visitar os teus lábios
de nêsperas e nardos
de moluscos e lírios,
com os teus argonautas perdidos.

Vou tatuar os teus mamilos
de ambrosias e bodas
de mitologias e ofídios
com os teus sátiros esquecidos.

Vou desatar os teus cabelos
de caracóis e medusas
de inconfidências e vidrilhos,
com os teus alferes vencidos.




BREVE COMUNICADO DO POETA BURGUÊS

Não posso mais meu pai ser Rei.

Dei o meu condado
de elmos e faunos,
meus moinhos e minhas moendas
meus corcéis e meus caprinos
e os palanquins do reinado.

Console os meus parentes
chore a minha partida
console os meus irmãos.

Vou criar barba para ser profeta
usar bandarilhas para ser toureiro
falar francês para ser poeta.

Não posso mais meu pai ser Rei.




AS PARCAS/EXERCÍCIO AMOROSO

Despir as fiandeiras
mitológicas: fio por fio.

Despir Cloto: dos fusos. 
Despir Láquesis: das rotas.
Despir Átropos: da lã.

Despir as fiandeiras
mitológicas: fio por fio.

A metamorfose do fuso: é ventre.
Das rocas é o cio.
Do novelo é o sêmen.




NATAL, SEGUNDO OS DESEJOS DE MARIA E JOSÉ

Que fosse
menino queria
José.

Que fosse
menina sonhava
Maria.

Menino
ou menina?

Menino,
tocavam os sinos
da freguesia.

Nos cantos,
que O adormeça Maria.

Nos hortos,
que O ampare
José.




Um abraço, bom fim de semana natalino para todos!

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Guilherme de Almeida

Olá, caros amigos e amigas,

O poeta de hoje é Guilherme de Almeida. "Último dos românticos", como é chamado, participou da Semana de Arte Moderna de 1922, e pode se ver em sua obra, desde 1917, quando publica seu primeiro livro, até 1969, quando falece, tanto uma profunda evolução no estilo, como uma poderosa vitalidade. Uma das demonstrações disso são os seus haicais. O poeta se dedica ao gênero em seus últimos anos, tanto como escritor quanto como tradutor. Abaixo, alguns belos exemplos. Destaque para "Hora de ter saudade", onde o poeta alcança a perfeição.



O pensamento

    O ar. A folha. A fuga.
No lago, um círculo vago.
    No rosto, uma ruga.




Hora de ter saudade

    Houve aquele tempo...
(E agora, que a chuva chora,
    ouve aquele tempo!)



Infância

    Um gosto de amora
comida com sol. A vida
    chamava-se "Agora".



Cigarra

    Diamante. Vidraça.
Arisca, áspera asa risca
    o ar. E brilha. E passa.




Um abraço, até a próxima!

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Caros amigos,

Hoje, um poema de Carlos Pena Filho (1929-1960). Apesar de ter morrido muito jovem, aos 31 anos, vítima de um acidente automobilístico, o poeta tem lugar garantido no nosso panteão. Se estivesse vivo, poderíamos comemorar o aniversário juntos: em 27 de maio ele faria 83 anos, enquanto eu, espero, farei 36. Dele, um belo poema:


Primeiro poema no vazio

Buscava tudo o que havia
de nunca mais encontrar
em sua face macia
em seu leve caminhar,
nas rotas claras do dia
nos verdes sulcos do mar
e de tudo quanto havia
de nunca mais encontrar
restou a forma vazia
suspensa no seu olhar
e a tênue melancolia
de quem não se soube achar
nas rotas claras do dia
nos verdes sulcos do mar.



Um abraço a todos, até a próxima semana.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

CONVÍVIO

Cada dia que passa incorporo mais esta verdade, de que eles não vivem senão em nós
e por isso vivem tão pouco: tão intervalo; tão débil.
Fora de nós é o que deixaram de viver, para o que se chama tempo.
E essa eternidade negativa não nos desola.
Pouco e mal que eles vivam, dentro de nós, é vida não obstante.
E já não enfrentamos a morte, de sempre trazê-la conosco.

Mas, como estão longe, ao mesmo tempo que nossos atuais habitantes
e nossos hóspedes e nossos tecidos e a circulação nossa!
A mais tênue forma de existir nos atinge.
O próximo existe. O pássaro existe.
E eles também existem, mas que oblíquos! e mesmo sorrindo, que disfarçados...

Há que renunciar a toda procura.
Não os encontraríamos, ao encontrá-los.
Ter e não ter em nós um vaso sagrado,
um depósito, uma presença contínua,
esta é a nossa condição, enquanto
sem condição transitamos
e julgamos amar
e calamo-nos.

Ou talvez existamos somente neles, que são omissos, e nossa existência,
apenas uma forma impura de silêncio, que preferiram.

Carlos Drummond de Andrade.